segunda-feira, janeiro 30, 2006

Orgia de Pasolini (2)

2. «Orgia» é uma reflexão sobre os limites do humano, sobre a fronteira definida nos papéis sociais desempenhados na vida pública e os domínios do íntimo e do privado. Mas, como de limites humanos se fala, é necessariamente sobre a morte, numa dinâmica construída precisamente a partir do momento em que morre o personagem masculino da peça.
A narrativa vai desenvolver-se num exercício de reconstrução dos factos pré-morte, factos que se vão encadeando na palavra do homem e da mulher, como se dentro de um quadro se criassem outros quadros. É desse princípio, da palavra (e quase só da palavra), que imanam os fantasmas que perseguem e dilaceram as duas personagens centrais. Fantasmas alimentados e criados num passado e num presente, construídos desde as vivências num mundo ruralizado, tão próximo das simbologias do catolicismo e também do próprio fascismo, ao destrutivo conformismo social em que mergulhava a Itália da época, uma Itália proveniente do pós-guerra, com um crescimento económico e urbano exponencial, beneficiando em toda a plenitude daquilo que se denominou como os «Gloriosos Trinta» anos. Portanto, e para além do exercício de estética dramática implícito, «Orgia» é também uma reflexão sobre aquele tempo, aquela Itália que Pasolini se esforçou por subverter com as suas obras e libertar dos males nefastos do conformismo. Daí, e citando-o, «do mesmo modo que não sou indiferente na realidade, também não sou, potencialmente, indiferente diante da reprodução da realidade». E «Orgia» é uma reprodução da realidade do seu autor e do seu tempo, não obstante negar-se a sê-lo por si só, e conseguir vincar-se num quadro de intemporalidade, tão presente hoje como há quarenta anos.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

20 Anos depois de Borges (1)

Jorge Luís Borges, argentino de Buenos Aires, cidadão do mundo, apreciador de Camões, nome maior da literatura universal, morreu há 20 anos. Durante este ano, o «supremeart» procederá a uma singela homenagem ao autor de «O Aleph», recuperando 20 poemas da sua autoria. Hoje, publica-se o primeiro, parte de uma recolha pessoal que consideraria «o meu melhor de Borges na Poesia».

AFTERGLOW (1923)
É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Orgia de Pasolini (1)

1. «Orgia», o primeiro texto para teatro de Pier Paolo Pasolini, foi escrito entre 1965 e 1968. Segundo o próprio autor, o texto final é resultado de três versões para uma «dupla tragédia». A primeira versão, escrita na Primavera de 1965, durante a convalescença de doença prolongada do autor, consistia numa espécie de manifesto daquilo que o próprio denominaria de «teatro da palavra» em reacção à linguagem «que exprime a realidade através da realidade» (ou «língua escrita de acção») do cinema. Nesta versão, Pasolini, sublinha que a tragédia «consistia pura e simplesmente numa relação sadomasoquista entre um homem e uma mulher», meramente existencialista.
Numa segunda versão, Pasolini subverteu essa atitude de reacção e transportou para «Orgia» as suas próprias teorias acerca do cinema sobre a «acção como linguagem». A peça adquiria uma segunda tragédia, desta vez linguística, que abandona a sua «origem puramente existencial» e a conjuga numa «comunicação sexual» que surge como parte de uma «linguagem primária ou da presença física». Ou seja, «Orgia» passa de exercício formal da palavra para um plano mais corpóreo, mais próximo de uma linguagem cinematográfica (visual, e consequentemente física).
É precisamente esta dupla tragédia, a versão final de «Orgia», que regressa agora ao palco, trinta anos depois da morte de Pier Paolo Pasolini, numa encenação de João Grosso para o Teatro Nacional D. Maria II, interpretada pelo próprio encenador e por Luísa Cruz e Kjersti Kaasa. Um exercício de representação complexo, violento e extremamente corporal fazendo justiça à dialéctica «teatro da palavra»/«negação da palavra», que recupera um dos autores incontornáveis da segunda metade do século XX, mais conhecido pela sua obra cinematográfica, obra essa de cariz experimental, provocatório e acutilantemente crítica do fenómeno social, político e religioso (infelizmente, e em DVD, estão editados no mercado português apenas os três títulos d´A Trilogia da Vida e o derradeiro «Salo ou Os 120 Dias de Sodoma», em edição da Costa do Castelo).

«Orgia» com encenação de João Grosso, repôs ontem no Teatro Nacional D. Maria II, prolongando-se as exibições até 19 de Fevereiro.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

As Lendas e os Mitos

Durante toda a história dos povos, homens se destacam para o bem e para o mal, na condução do rumo da humanidade. A sua idolatração ou diabolização cravou-os na memória colectiva e perpetuou-os através das gerações. Alguns deles permanecem ainda bem vivos nas bocas dos povos, para lá mesmo dos livros de história.
Na modernidade, o homo politicus assumiu por diversas vezes esse estado de perpetuação, mesmo que tal não resultasse por si só das forças artificiosas e coercivas da razão de Estado. Todos, mesmo aqueles que pouco conhecem da ciência ou dos afazeres da escolástica contemporânea, sabem que em tempos houve um Marquês de Pombal que reconstruiu Lisboa após o terramoto ou um poeta sem um olho de nome Camões. Por todo este País, de lés a lés, ninguém terá esquecido o ditador paternalista chamado Salazar, mesmo que o isolamento de outros tempos o tenham escondido dessa turba que o vil homem tanto temia.
Neste século XXI de triunfo da sociedade de informação e (apesar de tudo) conhecimento, os homens já não se fazem deuses ou demónios omnipresentes na memória colectiva. À luz do saber, da aprendizagem e desaprendizagem comum do homem desta era, as lendas e os mitos não se conseguem afirmar e perpetuar no tempo. Se por um lado tal facto revela uma afirmação clara de humanismo, por outro anuncia-se o fim de uma certa história colectiva agregada em pontos chave no qual se destacavam personalidades. Os mitos e as lendas eram também formas de mobilização, de crença e de sentimento capazes de cultivar a mais profunda forma de identidade colectiva: a memória. Para lá de serem simultaneamente instrumentos de alienação.
Hoje, quando os grandes homens se limitam às palavras dos livros de história e os que se destacam entre os seus semelhantes desmoronam normalmente sobre os seus próprios pés, a memória colectiva resume-se à exígua condição de artefacto do tempo, tempo esse que vai fazendo uma história ténue e imediata que se perde lentamente nas brumas do passado recente.
Por tudo isto, porque escasseia a memória colectiva, porque já não restam nem lendas nem mitos que se perpetuem, e provavelmente nem história, resta branquear o que resta dos dias passados e vividos. Talvez esta seja a razão porque o povo português vai, ao que tudo indica, eleger Cavaco Silva e ainda tolera Mário Soares.