sábado, dezembro 17, 2005

O Grito

Cada vez que contemplo a espantosa pintura de Munch ocorre-me que aquele grito é silencioso como a morte.
É como se ninguem pudesse socorrer uma humanidade que clama por socorro. Socorro do seu próprio desespero.
Nada se ouve, apenas se vê. O personagem no cimo do pontão (ou ponte?) debaixo do céu rubro e escaldante, perdido num imenso e profundo vazio.
Sonho ouvir o grito e perder-me no seu mais profundo silêncio. Mas não consigo, e entrego-me na contemplação da espantosa pintura de Munch esperando que aquele casal que lá vem socorra o desespero daquela criatura. Ou o desespero desta apocaliptica humanidade.

sábado, dezembro 10, 2005

Quando Chega Grace Kelly

(Ou aquele momento de Rear Window)

Ela irrompe no ecrã, beleza perfeita, universo de harmonia.

Num grande plano, um despertar que põe o cinema a imitar a vida

E dos olhos do herói da aventura, imana o nosso desejo.

Esse voyeur desconfiado que se deixa seduzir pela mulher cumprida.

Como o espectador que se deslumbra na contemplação do belo.

Só esse grande e anafado britânico para o entender,

Que quando chega Grace Kelly o mundo a nossos olhos muda.

- E se completa; mesmo que defronte de uma janela com vista para o crime.




quarta-feira, dezembro 07, 2005

Um Filme: ALICE


Cento e noventa e três dias passaram sobre o desaparecimento da pequena Alice. O pai, Mário, cumpre um ritual peculiar: recolher e substituir as dezenas de cassetes vídeo que captam imagens das ruas de Lisboa através de inúmeras câmaras previamente colocadas em casas de amigos, lojas ou terraços. Ao invés da mulher, destroçada pela perda e rendida aos factos, Mário crê piamente no seu plano porque, como diz, um dia a filha irá passar por aí e ele «estará lá». A omnipresença buscada num ritual de esperança e dor vai esbatendo na indiferença dos outros e no que soçobra da vida sem Alice, e Mário acaba abandonado à evidência de nunca mais recuperar a filha.
Em termos formais, «Alice» é um filme muito próximo de outra obra maior do cinema português, «Ossos» de Pedro Costa, pelo seu realismo, pelos seus silêncios, pela sua amargura e pela sua estrutura estética. Para lá do drama vivido pelas personagens, há em ambos uma crítica social feroz à indiferença e à desumanização das cidades. Em «Ossos» era o bairro de lata nos arrabaldes da metrópole; em «Alice» é a própria cidade e a sua malha urbana. A Lisboa branca dos bilhetes-postais nega-se numa cidade sempre fria, escura e chuvosa, mergulhada numa luz ténue, azulada e decrépita. Os rostos da urbe são uma negação profunda de identidade e solidariedade, surgindo tão padronizados na sua indiferença quanto o ritual inconsequente e constante em que se desenvolve o personagem principal durante todo o filme.
O que mais sobressai em «Alice» é essa visão hiper realista, carregada de gente dentro numa Lisboa urbana, opressora e absurdamente desumanizada. A cidade que é metrópole e olha de soslaio para a dor e o desespero de quem por lá está ou passa. Cidade, que aqui se chama Lisboa; cidade que somos todos nós, dia-a-dia, na nossa absurda e solitária rotina.