Beckett
Nascido no seio de uma família protestante, na Irlanda ultra-conservadora do início do século XX, Samuel Barclay Beckett só começou a definir o seu percurso quando aceitou, aos 22 anos, o cargo de leitor de inglês na École Normale Supérieure, em Paris.
Admirador e amigo de James Joyce, a cujo círculo pertencia, escreveu na língua materna os primeiros livros importantes: More Pricks Than Kicks (1934) e Murphy (1938). Contudo, após a II Grande Guerra, durante a qual militou nas fileiras da Resistência (o que lhe valeu uma condecoração por "coragem extrema"), houve como que uma mudança de paradigma na sua concepção de literatura. Cada vez mais preocupado com questões de linguagem, decide enveredar pela escrita em língua francesa, assumindo um bilinguismo (com traduções em ambos os sentidos) que nunca mais abandonaria.A trilogia de romances que publica no início dos anos 50 - Molloy (1951), Malone Está a Morrer (1951) e O Inominável (1953) - impõe-no de imediato como um autor maior, apesar das sucessivas recusas que as grandes editoras parisienses reservaram aos três manuscritos. Atento e deslumbrado, foi Jérôme Lindon quem acabou por publicá-los na sua Éditions de Minuit, a que Beckett se manteria fiel até ao fim da vida. A amizade entre estes dois homens tornar-se-ia, por si só, uma lenda. Durante várias décadas, Jérôme foi o canal de comunicação entre o mundo e Beckett - o recluso voluntário, avesso à exposição pública, às entrevistas e a todos os outros custos da fama. Quando lhe atribuíram o Nobel, foi Lindon que Beckett enviou a Estocolmo, para receber o Prémio. E foi também ao amigo que coube anunciar a sua morte, vinte anos mais tarde, em Dezembro de 1989.
Depois de ter revolucionado as formas teatrais, com À Espera de Godot (1953), Beckett prosseguiu o seu melancólico voo picado sobre a condição humana e a "tragédia de ter nascido", em obras de escrita minimalista onde cabe todo o desespero e toda a derrisão (veja-se por exemplo Os Dias Felizes, de 1961). Nas décadas de 70 e 80, à medida que envelhecia, foi escrevendo cada vez menos e com maior dificuldade. Algumas das peças finais duram apenas breves minutos (ou segundos) e nelas assiste-se a uma progressiva rarefacção das palavras, descritas um dia como a "mancha desnecessária sobre o silêncio e o nada".Gonçalo M. Tavares, autor de um texto teatral intitulado A Colher de Samuel Beckett, destaca no dramaturgo irlandês "o estilo sincopado, feito de frases travadas por algo que lhes é exterior". Quando as interrupções acontecem, abrem-se "espaços que forçam o leitor a completar os intervalos em branco, os vazios" e é nesse jogo literário que se cumpre o projecto beckettiano.Cinco anos antes de morrer, na última novela publicada - Pioravante Marche (Worstward Ho) -, Beckett escreveu três frases que resumem tudo: "Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor." Três frases que foram, de certa forma, uma divisa, um lema, a fixação exacta da ética que praticou enquanto escritor. Três frases que podiam ser o seu epitáfio, se houvesse epitáfio na lápide do cemitério de Montparnasse, em Paris. Mas não há.
Texto transcrito: diário de notícias (on line)